10/07/2004

REFORMA
Foi o Veríssimo que sugeriu numa crônica que a extinção do “e” nos pouparia de alguns incômodos, dentre os quais as duplas caipiras. E será que a supressão dessa conjunção aditiva realmente nos livraria de tenores tremosos de sotaque interiorano cantando em terças? Certamente que daria muito mais trabalho aos diretores de marketing das gravadoras nomear as duplas, mas a mudança na língua, creio, não seria suficiente para aplacar o furor cantante dos rapazes e muito menos o furor comercial de seus mestres.
Mas, se a vitória não é possível, vamos admitir que a extinção do “e” ao menos trouxesse algumas novidades. Aditiva que é, a conjunção “e” tem secretamente influído na concepção artística e musical das duplas caipiras. As vozes, trinadas em terças, se somam, querendo parecer uma apenas, o que torna as melodias corretas imperceptíveis para a maioria dos fãs. As imagens dos cantores também se somam, tanto que não sabemos quem é o qual, apenas reconhecemos a dupla.
Já imaginou um duo separado por uma vírgula? Tipo “Renato, Gabriel”? Quais as conseqüências disto? É uma dupla, certamente, mas...soa diferente. Talvez as vozes se harmonizem em quartas. Talvez façam contracantos, um cantando uma estrofe atrás do outro, ou uma sílaba! O que seria uma deficiência musical e um defeito técnico (retorno! retorno!) pode virar um charme. E atingir os mais lerdos, de forma que uma breve repetição se daria continuamente. Assim: eu-- a-eu mo-a vo-mo cê-vo –cê. E também os gagos, que se sentiriam enfim compreendidos.
Os cantores poderiam atuar em pontas opostas do palco, cada um num corner da câmara de TV. Cultivariam a individualidade, figurinos que não fossem redundantes, mas coordenados. Já pensou? Cada um teria uma oração só para o seu nome, próximas mas não subordinadas. Sem essa de por-que-não-o-meu-nome-na-frente! Ficaria mais fácil acomodar os egos. Temo no entanto, pelas controvérsias – que sempre as há. Poderia um cantante mais chegado a uma análise sintática cismar que o nome da dupla era uma progressão de sentido, em que o segundo aparecia como o verdadeiro, que o primeiro era só uma insinuação, o segundo a confirmação...etc. Mas isto são detalhes e sempre se pode argumentar de forma incompreensível e vencê-los pelo cansaço.
E, pensando bem, por que ficar só na vírgula? Por que não experimentar o ponto? Fica mais seco, paulistano. Poderia ser uma dupla meio tecno, cantando de preto, lançando umas dissonâncias, uns metais agressivos. Fica afirmativo, moderno, que no campo também tem progresso. Ou, mesmo, numa sutileza lusófona sem paralelo, poderíamos ter uma dupla separada por um ponto e vírgula! Quanta riqueza se esconde num sinal gráfico, quantos significados se poderiam evocar! E o aposto, o popular dois pontos? Um que se traduz no outro, os dois no mesmo. Fica bom para casais.
É, talvez a revogação do “e” pudesse ter efeitos auspiciosos e até inovar a nossa música caipira. Como se vê, as possibilidades são inúmeras...por que não usar reticências?

Esses tempos de FLIP em Paraty servem à reflexão sobre o processo de escrever, assim como servem à divulgação dos livros, escritores e suas histórias com o escrever. Tenho lido por aí definições – ou sugestões, pois os pensativos são gentis -, de que escrever é um processo penoso, de contato do escritor com os seus demônios. Fala-se em “duplo”, em sacrifícios, noites de sono perdidas por causa de vírgulas que não se sabe onde pôr, nada que realmente combine com o glamour e a mundanidade ilustrada da festa, e, no entanto, nada mais adequado. Por que? Vou arriscar um palpite, um lance no meio desse vozerio: escritores são mesmo, a maior parte deles, uns estranhos; a obsessão da perfeição possível num texto, fugidia, os faz íntimos da humanidade, mas quando emergem do texto pronto, estão paradoxalmente mais distantes da humanidade encarnada, pois viver não é escrever e vice-versa. São observadores que se apaixonam pela expressão e pelo que observam, seja a si seja ao outro. São mais iguais e mais diferentes, donde que achem esquisito que multidões os sigam, ainda que pequenas. Ficam incomodados e gratos com o assédio, que é, esse sim, um estranho que dispensa explicações.