25/11/2003

O meme egoísta ou a virose de linguagem?
O termo indústria cultural já é antigo, mas os desdobramentos que levaram a mídia a uma presença sufocante no mundo atual superaram qualquer previsão. A expansão dos meios levou à expansão, senão da qualidade das mensagens, ao menos da quantidade delas. Por trás do frenesi de comunicados há que haver muitos cérebros frenéticos, produzindo todo aquele conteúdo.
O biólogo Richard Dawkins, em seu livro “o gene egoísta”, cunhou o termo “meme”, que significa pensamento ou idéia, tomado como unidade do processo de evolução cultural. É algo que tem uma função semelhante à do gene no processo evolutivo. Um bom exemplo do que é um “meme” é a própria idéia de “meme”. A troca de idéias passou então a ser esquadrinhada com ferramentas da biologia, o que permitiu supor que a disseminação de memes estaria sujeita às mesmas regras que explicam a disseminação das espécies
A explosão da comunicação é então a explosão dos memes. E se há regras na difusão dos memes, seriam as mesmas aplicáveis aos genes, o que permite pensar na existência de memes egoístas. Tais memes competiriam por share of mind e, por que não dizer, por conexões de rede, share of network. Até que houvesse uma dominância estável, o que seria o fim do pensamento, redundância histérica e estéril. Já se vê que a coisa caminha para isso a passos largos.
Triste perspectiva, distante do que falou William Burroughs, um não-conformista de tempos mais humanos: “language is a virus”. Sem abrir mão da inspiração biológica, esta imagem sugere a expansão da linguagem como um vírus, a penetrar as formas percebidas e reproduzir-se, sem matar o hospedeiro a princípio, mas sem passar longe deste risco. A linguagem, não as idéias, se expande como um parasita, combinando os seus genes com os dos hospedeiros.
A julgar pelo estado das mídias, o que está vencendo a corrida é o meme, cada vez mais livre do vírus da linguagem, cada vez mais redundante. O vírus está morrendo sem vacina. Os memes são verdadeiros transgênicos, infensos à praga da linguagem. Ok, ok, confiemos na possibilidade de mutações para novas infecções...

18/11/2003

Alguém disse que diferentes acontecimentos em diferentes épocas poderiam ser equivalentes, por representar cada um para a sua época a mesma coisa. Épocas são como idiomas: não se pode traduzir uma nos termos da outra com exatidão, embora da tentativa possa resultar alguma coisa que empolgue ou intrigue. A que equivaleria, hoje, a imolação de Giordano Bruno na fogueira? Esse martírio de um cientista, por causa de sua ciência, talvez não possa ser transposto para o presente com personagens e significados equivalentes. Talvez, como o Pierre Menard que Borges fez reescrever o Quixote, ou como um bug na Matrix, a solução desta adivinha intertemporal seja ficar repetindo a mesma cena. Mas o astrônomo já ardeu. Um possível equivalente: o grito de um jovem poeta semi-alfabetizado, torturado em algum cantão da Ásia. Sei não. As verdadeiras equivalências, se existem, conspiram anônimas através dos tempos e do espaço.

11/11/2003

Livro-me do livro? O monitor vertical, mesmo que de generosa matriz LCD, confortável dot pitch, de-interlaced etc, ainda não está à altura do papel. Aliás, às alturas em que o papel está, que variam conforme se leia no ônibus, na cama ou mesmo através do blindex durante o banho, são um dos grandes baratos desta tecnologia que cisma em não ficar obsoleta. A cada morte decretada, a polpa, o papiro, o papel, explode em vitalidade e amplia os seus domínios. O livro, brinquedo tátil-intelectivo, que se explora com as mãos e com a mente (software residente), se oferece sob um e outro aspecto, dando ao leitor um refresco de tato quando o intelecto se cansa e abrindo-se à leitura quando as mãos já brincaram ao ponto de descansar a atenção. Já este outro papel, luminoso, à beira de virar e-paper, é o palimpsesto perfeito...escreve-se, reescreve-se e não ficam rastros. Faz também as vezes de memória, permitindo o hyperlink para valer, a alusão que mata a cobra e mostra os bits. Laboratório de palavras (mas não só), borrador privilegiado, é o oposto da permanência. Ainda publico isso...

08/11/2003

Li "O calígrafo de Voltaire", do Pablo de Santis, em dois dias, ida e volta para o trabalho. São 160 páginas! Como o título diz, o personagem principal é um escriba a serviço do sábio de Ferney, que por ordens de seu patrão se mete numa conspiração, entre dominicanos e autômatos, às vésperas da revolução francesa. A figura do calígrafo, nessa época em que todos com um PC brincam de sê-lo, se presta a belas sacações. O texto é ágil, o livro transita do relato autobiográfico à narrativa de aventura, do frisson da conspiração às reflexões sobre a escrita, o amor, a história. Não lhe falta sequer o final inusitado. Viva o autor! Recomendo.

07/11/2003

"Linked:The New Science of Networks", de Albert-László Barabási, é um livro de 2002 que pretende demonstrar e discutir "como tudo está ligado a tudo mais e o que isto significa para a ciência, os negócios e a vida cotidiana". É um tratado de "ciência das redes", um campo de estudos da matemática que pretende analisar coisas complexas, tão diversas como sistemas biológicos, tráfego de aeroportos e a internet modelando-os como se fossem redes de interações.
O grande desenvolvimento recente desse campo, cuja origem remonta ao matemático Euler, se deve a que a internet tem se mostrado um excelente campo de teste e desenvolvimento para os seus conceitos. Os softwares que rastreiam o tráfego na grande rede geram imagens espetaculares, instantâneos da complexidade das estruturas de comunicação digital que, supõem os network scientists, estão presentes também em outros sistemas humanos.
Aparentemente, é uma abordagem à  complexidade muito sedutora, por ser calcada na matemática, o que, de acordo com os preconceitos correntes, a deixaria isenta de subjetividade. Chega com cara e carisma de ferramenta definitiva, aquela que permitiria desvendar os grandes problemas do mundo porque vem integrar tudo aquilo que séculos de racionalismo analí­tico transformou em pedacinhos. Seu marketing é eficaz. Como diz o autor do livro, "A ciência baseia-se no pressuposto de que o diabo está nos detalhes. A isso se chama reducionismo. Quando tentamos compreender qualquer coisa, da célula ao ecossistema, tentamos primeiro entender do que é feito, partindo-o em pedaços". Uma prece, portanto, a uma visão integradora, a algo que conecte os pedaços em que a razão analí­tica transforma tudo, na ânsia de tudo compreender. Nada mais afinado com os tempos atuais, em que vige o mote de que para compreender o particular, é preciso compreender o geral.
O primeiro capí­tulo do livro está disponí­vel para download em inglês. Abaixo, a tradução de trechos de uma entrevista do autor, obtida no seu site pessoal:

Por que deveríamos nos importar com as redes? Você diz que são "a próxima revolução científica". Elas são realmente algo importante?
Por trás da maior parte dos sistemas complexos há uma rede intrincada. A vida está codificada numa complexa rede de moléculas ocultas na célula. A internet é uma rede complexa de computadores ligados por fios. A economia é uma rede complexa de empresas, consumidores e agências reguladoras. A sociedade é uma rede complexa de gente ligada por amizade, laços familiares e profissionais. Só nos últimos anos constatamos quão importante é o papel destas redes em moldar o comportamento da maior parte dos sistemas complexos. Aprendemos que a compreensão das redes é o pré-requisito crucial para o entendimento da complexidade. Portanto, muitos cientistas de várias disciplinas diferentes deflagraram uma agressiva abordagem que visa entender as teias com as quais a natureza nos cerca. A rede social não é diferente daquela rede química de quatro bilhões de anos de idade que está em nossas células ou da web, que só conta uma década.

E quais são as similaridades entre elas?
Por várias décadas, acreditou-se que as redes eram fundamentalmente aleatórias, isto é, presumia-se que os nós, como são as páginas da Web, as pessoas na sociedade ou as substâncias que há na célula, vinculavam-se aleatoriamente umas às outras. Mas, à medida que começamos a observar redes reais, notamos que havia elementos recorrentes em todas elas, o que fragiliza crescentemente a hipótese aleatória. Na Web, meu grupo de pesquisa documentou a existência de uns poucos sites, como o Yahoo.com, que têm dirigidos para si uma extraordinária quantidade de links. Na sociedade, os sociólogos observaram a existência de conectores, uns poucos indivíduos com um número extraordinário de conhecidos. Na célula, meu grupo e outros notaram a existência de umas poucas moléculas que participam em praticamente todas as reações químicas. Estes “hubs” (ou centrais), como vieram a ser chamados, simplesmente não podiam ser explicados a partir da hipótese aleatória. Eles nos diziam que algumas leis comuns a todas as redes devem existir, responsáveis pelo surgimento desses "hubs".

O papel luminoso se inicia aqui, como um rolo de papel eletrônico sem fim. Pretendo interferir nos elétrons que se projetam do tubo rumo aos olhos e nos impulsos nervosos rumo ao cérebro, sem muita pretensão no entanto. Anotações, comentários, lembretes e lembranças vão andar por aqui. Literatura, arte, vida, política, educação. De tudo que o papel aceita haverá um pouco, contra os preceitos do marketing. Quem sabe os fragmentos se aglutinem ocasionalmente em formas reconhecíveis e isso seja bom...